Em Portugal temos assistido a um progressivo aumento do número de mulheres ciclistas — o que resulta do próprio aumento de ciclistas de forma geral nos últimos anos. No entanto, esta é uma realidade comum a muitos outros países: há substancialmente mais homens do que mulheres a usar a bicicleta, seja como meio de transporte, seja em lazer. Porque é que isto acontece? E o que pode ser feito para incentivar as mulheres a pedalar? De acordo com um dos últimos relatórios produzido pelo U-Shift – CERIS do Instituto Superior Técnico acerca da evolução da utilização da bicicleta, entre 2019 e 2020 houve um crescimento de 25% no número de ciclistas na cidade de Lisboa. Do total de ciclistas contabilizados, cerca de 26 por cento são mulheres — ou seja, sensivelmente um quarto, um valor que está em consonância com o que se verifica noutras cidades europeias. Mas ainda que pareça pouco, a verdade é que o crescimento tem sido notório, pois em 2017 o número de mulheres andava somente pelos 17 por cento. A este crescimento não é alheio o contexto criado pela pandemia da Covid-19. Durante o confinamento houve uma acalmia generalizada do tráfego automóvel, a implementação de medidas como a criação de ciclovias pop-up e a necessidade individual de fazer mais exercício ao livre, para lidar com os efeitos psicológicos da pandemia. Tudo isto contribuiu para que mais mulheres encarassem a bicicleta como um meio de transporte viável. No entanto, continua a ser evidente a disparidade entre a quantidade de homens e de mulheres que vemos nas ruas a usar a bicicleta. Não é que elas não gostem de pedalar: simplesmente ponderam mais os riscos, ou precisam de mais garantias. Só em países onde a utilização da bicicleta foi largamente promovida e acompanhada de políticas de mobilidade robustas, como os Países Baixos, a Alemanha e Dinamarca, é que a utilização da bicicleta por ambos os sexos é mais equitativa, com as mulheres a representarem entre 45 a 55 por cento das viagens de bicicleta realizadas. As principais barreiras É sobretudo a sensação de falta de segurança ao partilhar a estrada com os automóveis o que afasta muitas mulheres da ideia de pedalar no quotidiano. As mulheres referem mais frequentemente preocupações de segurança como razão para não usarem a bicicleta, algo que não é tão recorrente nos homens. E mesmo com políticas de mobilidade em curso, muitas cidades não conseguiram ainda avançar o suficiente nesta matéria — além de ciclovias, as medidas efetivas de acalmia de trânsito são fatores que tornam as cidades mais seguras e convidativas. Uma olhadela superficial para a população que pedala em Portugal leva-nos a concluir que a grande maioria dos ciclistas urbanos são homens em idade ativa, uns “heróis” de grande coragem capazes de enfrentar o trânsito. Embora não seja sempre assim, é verdade que mulheres, crianças e idosos, perante a falta de infraestruturas adequadas, ciclovias ou medidas que permitam percursos mais seguros, acabam por não arriscar tanto, tornando-se mais facilmente peões do que ciclistas. Por outro lado, muitas mulheres, sobrecarregadas com as responsabilidades do quotidiano — ir buscar os filhos à escola, ir às compras, entre outras tarefas — concluem ainda antes de tentarem que a bicicleta não é para si, achando que não será prática, dado que precisam de fazer percursos com muitas paragens. Algo que seria facilmente resolvido, ainda assim, com redes de ciclovias que interligassem em segurança as zonas escolares e de comércio. A bicicleta não é só para atletas Mas a menor apetência do sexo feminino para usar a bicicleta tem a ver com muitos fatores, não só a segurança. É, também, uma questão cultural. Desde a invenção da bicicleta que as mulheres têm ficado sempre para trás no que toca a seu uso, impedidas de pedalar principalmente pelas roupas pouco práticas e pela “moral e bons costumes”. E mesmo hoje, em que não só as mulheres usam calças há décadas, como podem perfeitamente usar a bicicleta onde e quando bem quiserem sem que ninguém se sinta ofendido, existem ainda fortes empecilhos sociais e psicológicos. Pode-se pregar a igualdade a todos os níveis em teoria, mas pensemos: quantos pais e mães incentivam ainda as suas filhas a brincarem com bonecas, enquanto encorajam os rapazes a serem aventureiros com a bicicleta? Se recuarmos até às décadas de 1980 e 90, vamos encontrar muitas crianças do sexo feminino, hoje mulheres adultas, que nem sequer foram ensinadas a andar de bicicleta, ao contrário dos seus pares masculinos. Mas mesmo quando essa questão — o saber andar de bicicleta — não se coloca, a verdade é que no geral as mulheres mostram-se menos propensas a escolher a bicicleta como meio de transporte. Sucede que as mulheres são ainda mais facilmente julgadas pela sua aparência do que os homens, e a perceção geral da sociedade é que andar de bicicleta é uma atividade que envolve suor, esforço, equipamentos complexos e um ar desmazelado. E poucas mulheres querem chegar ao local de trabalho, ir às compras ou buscar os filhos à escola com ar de quem fez a Volta a Portugal. Ou seja, a representação mental do “ciclista” ainda é imediatamente associada ao desporto e ao esforço, algo que desmotiva logo à partida muitas mulheres, quando o que elas procuram é um meio de transporte seguro e eficiente. Claro que, quando percebem que não tem de ser assim, que usar a bicicleta como meio de transporte não tem de envolver “suor, esforço, equipamentos complexos e um ar desmazelado”, é ultrapassada uma importante barreira. E, comprovadamente, quanto mais representatividade houver, quantas mais mulheres virmos a pedalar no dia a dia, mais lhes seguirão o exemplo. Mais confiança e mais segurança A confiança é, por isso, a principal competência que falta a muitas mulheres, e algo que se observa mais naturalmente no sexo masculino — seja porque os rapazes/homens obtêm validação social mais facilmente, seja porque nas lojas, oficinas e fóruns muitas vezes cria-se um ambiente de conversa “geek” da qual muitas mulheres se sentem excluídas. Daí que seja importante que as mulheres falem com outras mulheres ciclistas quando o assunto é começar a pedalar no quotidiano — não numa lógica de segregação dos sexos, mas sim numa lógica de identificação e de partilha de experiências, dificuldades ou necessidades que, por vezes, não são imediatamente reconhecidas pelos companheiros ciclistas do sexo masculino. Ao mesmo tempo, as políticas de mobilidade têm de ser pensadas também em função das mulheres. Não basta ter infraestruturas, não é suficiente ter quilómetros e quilómetros de ciclovia, se estas não transmitirem segurança às mulheres nos seus percursos, ou se não permitirem fazer percursos lineares casa-trabalho-escolas-zonas comerciais. Diz-se que um bom indicador de segurança no que toca à mobilidade de uma cidade é quando se vê uma mulher a transportar os seus filhos de bicicleta. De facto, a simples existência de mulheres a pedalar dá pistas quanto à segurança nesta matéria, como confirma a APBP - Association for Pedestrian and Bicycle Professionals: Entende-se que as mulheres são catalisadoras de um design seguro para peões e bicicletas, portanto, as mulheres que usam a bicicleta ajudam a melhorar a qualidade de vida de um determinado lugar. [Texto originalmente publicado em We Love Cycling by Škoda em Outubro 2021] Comments are closed.
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O Ciclista— Alexandre O'Neill
O homem que pedala, que ped'alma com o passado a tiracolo, ao ar vivaz abre as narinas: tem o porvir na pedaleira. Todos os textos e fotos:
© Laura Alves [excepto onde indicado] Imagem de capa: Collective Farm Worker on a Bicycle, Alexander Deineka, 1935 Histórico
Fevereiro 2022
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