Na freguesia da Penha de França, a área de espaços verdes é inferior a 1m2 por habitante. O Jardim do Caracol da Penha, cujas obras ainda estão em curso, poderá vir a colmatar esse défice. Mas até lá, como se respira nesta freguesia tão populosa? Mal, diria eu. Estou neste momento na Praça Paiva Couceiro. São cerca das 10 horas da manhã e, enquanto escrevo estas palavras, em meu redor multiplicam-se as buzinas de um lado e do outro da praça, motivadas quer pelos automóveis estacionados em segunda fila a impedir a circulação, quer pela impaciência quando alguém não arranca imediatamente no milésimo de segundo após o semáforo mudar para verde. São cerca das 10 horas da manhã e toda a envolvente desta praça é uma ode ao nervosismo e à taquicardia. Nada de novo — resido na zona há uma meia dúzia de anos e é assim todos os dias. Entretanto, do ponto de onde estou, o meu olhar dirige-se para um grande e fascinante muro, completamente revestido de hera. É o muro que separa a Rua do Sol a Chelas da Rua António Gonçalves, naquela zona onde há umas décadas se erguia o bairro da Curraleira — e tenho para mim que este é o maior espaço verde da freguesia da Penha de França. Parques urbanos mais próximos, onde se possa andar uns quantos metros de forma despreocupada sem esbarrar num automóvel? Temos o Parque Urbano do Vale da Montanha, na freguesia do Areeiro, que cola ao Parque da Bela Vista, este já na freguesia de Marvila; temos o jardim do Campo Mártires da Pátria, na freguesia de Arroios; e o Parque José Gomes Ferreira (vulgo Mata de Alvalade), na freguesia de Alvalade. E depois temos uns espaços pequeninos mas jeitosinhos, como o Jardim Constantino (Arroios), o Jardim Fernando Pessa (Areeiro), o Jardim da Cerca da Graça (São Vicente), o Miradouro do Monte Agudo (Arroios), que tem árvores, mas sendo uma encosta íngreme, não é possível passear por entre essas mesmas árvores, ou a Alameda (Areeiro), se bem que esta última carece de sombras, é apenas um grande relvado. O que é que todos estes espaços verdes que acabei de enumerar têm em comum? Nenhum deles fica na freguesia da Penha de França. Na Penha de França temos a Parada do Alto de São João, que na verdade é um parque de estacionamento automóvel com uns canteiros à volta, e claro, o cemitério, que é realmente um sossego (e um bom sítio para passear e falar com os nossos botões, vão por mim). Enquanto ciclista e mulher, quero o direito à liberdade de me mover na cidade com o meio de transporte que quiser, e não ser penalizada em termos de segurança porque o meio escolhido é a bicicleta. Sempre que ouço alguém a falar de “ciclovazias” – um “trocadilho esperto” que, na realidade, revela mais do preconceito, da falta de ideias e do desprezo pelas formas de mobilidade suave de quem o atira para a conversa do que verdadeiro sentido de humor – lembro-me sempre de um episódio que se passou comigo há uns quatro ou cinco anos em Lisboa. Na altura, já a ciclovia da Avenida Duque d’Ávila funcionava em pleno, a zona do Saldanha já havia sido intervencionada, pelo que toda aquela zona — ainda para mais sendo praticamente plana – atraía cada vez mais pessoas a usar a bicicleta. Estamos a falar de uma altura em que o sistema de bicicletas partilhadas, a GIRA, ainda não estava instalado naquela zona da cidade, mas em que, por existir uma ciclovia a atravessar um eixo central da cidade (interligando-se depois com as ciclovias da Avenida Fontes Pereira de Melo e Avenida da República), as bicicletas surgiram naturalmente. Num dado dia de manhã, encontrei-me com um colega de trabalho na Duque d’Ávila, antes de nos encaminharmos para uma reunião com um cliente num edifício ali perto. Enquanto fazíamos tempo e bebíamos o nosso café antes da reunião, não sei como nem porquê, o assunto virou para a mobilidade e para a falta de transportes públicos em algumas zonas de Lisboa — o meu colega morava e mora precisamente numa zona mal servida de transportes públicos, a Ajuda, e sendo fotógrafo precisa com frequência de transportar material de trabalho pesado, logo, o carro é-lhe uma ferramenta essencial. E anuí; sou solidária com os argumentos quando estes são válidos e com os desafios com que os outros se deparam. Mas foi então que o meu colega lançou a bomba: «É que depois fazem estas ciclovias que ninguém usa!». Ora, eu que, naqueles minutos em que estávamos ali à conversa à beira da ciclovia, já tinha visto pelo canto do olho passar uns dez ou doze ciclistas das mais diversas espécies, não me contive. Como é que ele não tinha visto nenhuma bicicleta a usar a ciclovia, se eu, que estava ali mesmo junto a ele, tinha visto uma mão-cheia? E foi aí que percebi. Só vemos aquilo a que damos importância. Desde há muitos anos que a bicicleta enquanto meio de transporte me é um tema caro e, como tal, onde quer que eu vá, onde quer que eu esteja, qualquer bicicleta que passe por mim na rua não é ruído de fundo – a minha atenção é captada por ela, por um segundo que seja, o suficiente para ver se aquela pessoa é homem, se é mulher, se vai a praticar desporto, se vai a passear, se vai em modo casa-trabalho, se vai com crianças, se a bicicleta é nova, se é velha, enfim, uma panóplia de coisas fugazes, umas vezes contando histórias, outras não, mas que pessoalmente me alegram. E depois há quem não veja nenhuma bicicleta. Mesmo quando elas estão lá, quando passam ao lado na estrada, quando vão pela ciclovia, quando estão parqueadas na rua, quando fazem parte da vida em sociedade. São completamente invisíveis, como se não existissem. Para certas pessoas, muitas delas com efetiva responsabilidade naquilo em que as cidades se tornam, as bicicletas apenas existem pela negativa: ou seja, apenas se tornam visíveis quando lhes causam incómodo. |
O Ciclista— Alexandre O'Neill
O homem que pedala, que ped'alma com o passado a tiracolo, ao ar vivaz abre as narinas: tem o porvir na pedaleira. Todos os textos e fotos:
© Laura Alves [excepto onde indicado] Imagem de capa: Collective Farm Worker on a Bicycle, Alexander Deineka, 1935 Histórico
Fevereiro 2022
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