Quando se propaga a ideia generalizada de que quem anda de bicicleta está apenas a passear, contribui-se para não se levar a sério a presença dos ciclistas na estrada. Proponho, então, uma mudança de paradigma. É comum as pessoas desejarem "bom passeio" a quem anda de bicicleta. Muito embora seja um gesto absolutamente simpático, sugiro que se diga antes "boa viagem" — porque mesmo que andar de bicicleta seja divertido e relaxante (e é geralmente), quem usa a bicicleta como meio de transporte está em modo "meio de transporte”. Todos temos, uma vez por outra, aqueles momentos em que levamos a mão à cabeça, naquele gesto incrédulo de “caramba, como é que nunca pensei nisto antes?” Pode ser uma prática, um processo, algo que nos facilita a vida pessoalmente, e que se adota completamente ao ponto de não pensarmos mais nisso — como, sei lá, andar sempre com um saco de compras na mala, para não se ter de comprar sacos quando se vai ao supermercado. Ou quando nos apercebemos de alguma mudança urbanística que é feita para o bem comum — como por exemplo, passadeiras de peões rebaixadas, para facilitar o acesso aos passeios pelas pessoas com dificuldades de mobilidade, em cadeiras de rodas ou a empurrar carrinhos de bebé. Como é que por esse país fora vivemos décadas e décadas com aquele irritante desnível entre estrada e passeio que, sendo pequeno, por vezes é o que basta para se transformar num obstáculo? Eu própria dou graças aos passeios rebaixados quando vou pelas ruas do meu bairro com o meu carrinho fazer as compras da semana... Mas isto para dizer que todos nós nos habituamos a funcionar de certa maneira (porque assim fomos ensinados ou levados a pensar), e quando percebemos que existe outra forma de fazer as coisas, temos um momento “Eureka”, aqueles segundos de iluminação — “afinal, uma coisa tão simples, muda tudo”. Podemos nunca mais gastar dinheiro em sacos no supermercado e poupar de facto algum dinheiro. Podemos rolar suavemente da estrada para o passeio sem qualquer percalço ou distensão muscular ao puxar o carrinho de compras. Obrigado, mas já agora… Recentemente apercebi-me de uma questão de linguagem relacionada com o uso da bicicleta. Algo que a maioria das pessoas diz com a melhor, a mais pura das intenções, mas que a mim me deixa de algum modo com “a pulga atrás da orelha”. Imaginem que estão no trabalho, ou até mesmo que se encontraram com um grupo de amigos algures numa esplanada. Um dos vossos colegas de trabalho ou amigos desloca-se normalmente de bicicleta. Quando chega a hora de se despedirem e de esse colega/amigo pegar na sua bicicleta e pedalar até casa, vocês dizem-lhe “Então até amanhã, bom passeio!”. Qual é a pulga atrás da minha orelha? Aquele “bom passeio”. Porque quando alguém usa a bicicleta como meio de transporte no seu dia a dia, não se trata de passeio. Claro que passear é bom. É ótimo! Quem é que não gosta de um bom passeio de bicicleta? Seja na cidade ou no campo, sou sempre a favor de um passeio para espairecer ou conhecer novos locais. Andar de bicicleta devagar, sem destino, só pelo prazer de pedalar e olhar para o que nos rodeia, é e será sempre uma das melhores coisas do mundo. Mas se não dizemos “bom passeio” a alguém que conduz um automóvel no percurso casa-trabalho, e sem dúvida que não o dizemos a quem apanha diariamente um autocarro, o comboio ou o metro, porque o dizemos a quem se desloca de bicicleta de forma utilitária? A bicicleta enquanto meio de transporte Comecei a pensar mais a sério nesta questão depois de ver um catálogo de uma cadeia de supermercados, em que se anunciava uma série de promoções, produtos e equipamentos relacionados com a bicicleta. Nele, a acompanhar a imagem de um rapaz de capacete e equipado para pedalar, podia ler-se o título “Para os melhores passeios”. E, na minha mente, ficou a bailar a pergunta: mas é assim que as empresas e as marcas ainda olham para a bicicleta? Apenas como uma forma de passear? E se as campanhas de marketing usam este pressuposto, então, qual é a perceção da sociedade de forma geral? A questão é que andar de bicicleta é muito mais do que passear. (Novamente, nada contra passear — adoro. Mas sigam o meu raciocínio.) E isso leva-nos à nossa cultura de partilha da estrada, em que tendemos a olhar para os utilizadores vulneráveis — ciclistas e peões — mais como obstáculos do que como elementos que se encontram no mesmo patamar de importância. Tendemos a percecionar alguém que usa uma bicicleta como alguém que se encontra num momento de relax, em oposição a usar a bicicleta como meio de transporte efetivo. E, em consequência, há depois quem desvalorize a sua presença na estrada. E quando não se respeita alguém, ou não se olha para alguém como nosso igual, será que conseguimos manter uma postura responsável e segura ao partilhar a estrada? Fica a questão. A linguagem é um agente de mudança Possivelmente algumas pessoas pensarão que isto é um exagero. Que dizer “bom passeio” é apenas uma forma de expressão. E que há, de facto, pessoas que passeiam de bicicleta. E cada vez mais. Certíssimo. E ainda bem! É, aliás, começando por passear de bicicleta que se ganha o gosto e a confiança para a passar a usar também noutras circunstâncias do dia a dia. Mas as palavras e expressões que usamos no quotidiano podem, efetivamente, mudar-nos o cérebro. A linguagem é determinante para criar contexto e para criar condições de inclusão. E usar as palavras certas, nas situações certas, pode fazer a diferença, porque a comunicação não é só o que é dito, mas sobretudo aquilo que é ouvido — ou percecionado. Comecemos, pois, a usar a linguagem para evidenciar realidades e para provocar mudança social. Não se perde nada, e pode-se ganhar muito. Se aquele amigo vai dar uma voltinha de bicicleta para espairecer ou está a planear pedalar por uma ecopista nas férias, digam-lhe “bom passeio!”. Se a vizinha do rés-do-chão saiu de casa toda equipada com a bicicleta de estrada e até ligou o Strava para avaliar a performance desportiva, saúdem-na com um “bom treino!”. E o colega que acabou de sair do trabalho e está a arrumar o computador portátil no alforge, a preparar-se para se meter no trânsito e pedalar uns quantos quilómetros até casa? Digam-lhe o mesmo que diriam a alguém que faz o mesmo ao volante de um carro. Desejem-lhe, muito simplesmente, “boa viagem!”. Porque é isso que ele/ela quer: ter uma viagem de bicicleta tranquila e segura. [Texto originalmente publicado em We Love Cycling by Škoda em Agosto 2021] Comments are closed.
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O Ciclista— Alexandre O'Neill
O homem que pedala, que ped'alma com o passado a tiracolo, ao ar vivaz abre as narinas: tem o porvir na pedaleira. Todos os textos e fotos:
© Laura Alves [excepto onde indicado] Imagem de capa: Collective Farm Worker on a Bicycle, Alexander Deineka, 1935 Histórico
Fevereiro 2022
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