Quando falamos de ciclistas e de peões, de utilizadores vulneráveis, não estamos a falar de coisas abstratas. Estamos a falar de pessoas. De vidas humanas. Patri, 37 anos, italiana, residente em Portugal há 14 anos, investigadora no Instituto Superior Técnico, grávida de quatro meses. No passado fim de-semana, o país foi confrontado com a bicicleta da Patri, um pedaço de metal amarfanhado, com a roda traseira esmagada sob o peso de um carro, e um para-brisas estilhaçado que revela um cenário trágico: a Patri morreu no sábado passado, na Avenida da Índia, entre Algés e Lisboa, abalroada por um automobilista octogenário alegadamente encandeado pelo sol. Ao que sei através de amigos comuns, a Patri era uma pessoa experiente a usar a bicicleta, fazia-o com entusiasmo, era cuidadosa, cumpria as regras. Iria o automobilista em excesso de velocidade? Teria ele respeitado os 1,5 metros ao fazer uma ultrapassagem, se é que a tentou fazer de todo? Teria ele sequer considerado que poderia haver outros elementos mais vulneráveis na estrada? Não teria visto a bicicleta à sua frente antes de ser encandeado pelo sol? Teria ele sequer abrandado perante uma situação de encandeamento que exige reflexos apurados? Apenas posso especular, na verdade. Sei, porém, que a Patri tinha todo o direito a estar onde estava, a usar a bicicleta numa via onde não é proibida a circulação de bicicletas, tinha todo o direito a pedalar enquanto grávida, a circular devagar e à sua própria velocidade numa via onde, legalmente, o limite é 50 km/h. E dizer o contrário revela um desconhecimento das leis e, pior, é perpetuar um sistema podre. Mas os abutres costumeiros não tardam em responsabilizar a vítima pela sua própria morte, num triste eco da falta de empatia que assola tantos outros quadrantes da sociedade: “ninguém devia andar ali de bicicleta”, “lamento, mas ela pôs-se a jeito”, “toda a gente anda naquela avenida a mais de 100”, “os ciclistas não cumprem as regras e depois admiram-se…”. Ide-vos catar com a história do “paga o justo pelo pecador”. Recuso-me a pagar por qualquer espécie de “pecado”, quando sei por experiência própria que MESMO que cumpras todas as regras, que pares em todos os semáforos e sinalizes todas as manobras, sejas cortês e cauteloso/a, nada disso interessa a partir do momento em que vais em cima de uma bicicleta. Tornas-te “irrelevante” e “irresponsável”. E ao que sei, a Patri não era irrelevante nem irresponsável. É de pessoas que estamos a falar Sobre a Patri, ou melhor, a Patrizia Paradizo, diz quem a conhecia bem que era “de riso fácil, sempre pronta a ajudar” e que, “com o seu forte sotaque do sul de Itália, tinha-se tornado uma investigadora de enorme potencial, reconhecida, respeitada”. Uma das suas amigas fala de “uma dançarina, ciclista, futura mãe. Toda ela era movimento.” Detenho-me aqui. Toda ela era movimento. E deixo que estas palavras assentem em mim, em vós. Porque a Patrizia não é, não será apenas mais um nome para ler num feed de redes sociais e passar à frente. Aqui, neste momento, estou a humanizá-la, para que todos entendam que é de pessoas que estamos a falar. É que no vórtice de informação, no esgrimir de pontos de vista e na insensibilidade opinativa que contaminam o espaço de debate, esse tão simples facto tende a ficar esquecido. Quando falamos de ciclistas e de peões, de utilizadores vulneráveis, não estamos a falar de coisas abstratas. Estamos a falar de pessoas. De vidas humanas. Há quem tenha tendência a se esquecer disso. Uns de forma premeditada e maldosa, muitos outros por simples falta de noção – mas com a mão no gatilho pronta a disparar opiniões que, mais do que não acrescentando nada de útil, aumentam a clivagem e atiçam uma guerrilha nada saudável. Como alguém me disse ontem, “as pessoas não são um fantoche de flutuações partidárias/políticas, merecem segurança e respeito, e a vida deve ser protegida”. E encontramo-nos hoje num sítio bastante estranho enquanto sociedade. Foram vários os meios de comunicação que publicaram artigos sobre o atropelamento da Patrizia. Alguns deles incorreram no erro costumeiro, com títulos de “bicicleta choca contra carro”, quando o que aconteceu foi precisamente o inverso: um carro chocou contra uma bicicleta. O mais forte contra o mais fraco. Independentemente disso, assistiu-se a uma catrefa de comentários culpabilizadores da vítima. Mas permitam-me aqui fazer um parêntesis. Logo no dia a seguir, um desses jornais dava conta de outra tragédia: a morte de uma mulher, vitimada pelo capotamento de um carro numa autoestrada e do qual já tinha resultado a morte do condutor. Mortes que lamento, obviamente. Só que há uma pergunta que me inquieta quando vejo as caixas de comentários, esse novo ópio do povo: porque é que as vítimas de acidentes rodoviários com automóveis são merecedoras de tantos “paz à sua alma”, sem qualquer questionamento do comportamento que levou ao trágico desenlace (sendo o mais comum a velocidade excessiva), mas uma pessoa de bicicleta que seja atropelada é “porque se pôs a jeito”, não devia isto, não devia aquilo…? Reclamemos a mesma compreensão, a mesma empatia e pesar pelas vítimas de atropelamento que vemos para com os condutores que provocam a sua própria morte. Assiste-se a uma conivência social absolutamente ultrajante para com as mortes na estrada devido à negligência de automobilistas. E a negligência tem muitas formas — excesso de velocidade, excesso de álcool, distrações ao volante pelas mais variadas razões, sendo o telemóvel a mais frequente, desvalorização da segurança dos outros utilizadores das vias, como peões e ciclistas. Ainda ontem, num artigo do Público assinado pelo jornalista Abel Coentrão, li o seguinte, com base num relatório publicado esta semana pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR): […] o excesso de velocidade constitui um problema sério […], como demonstrado por comparações internacionais quanto ao número de condutores que conduzem a velocidades acima do limite legal, em autoestradas, estradas interurbanas e especialmente em arruamentos urbanos.” Um excesso de velocidade de 20 km acima do permitido, indica-se, “corresponde a um elevado excesso de perigo de morte e ferimento grave.. E isto é tão mais grave e problemático quando por esse país fora continuamos a ter ruas concebidas como estradas, quase vias rápidas, completamente desadequadas aos ambientes urbanos, permitindo velocidades e comportamentos ao volante que põem em risco todos os utilizadores — não só os mais vulneráveis, mas sobretudo estes. E pior: são as próprias autoridades quem periodicamente alerta os automobilistas para as operações de fiscalização e radares, como se não fosse esperado que os limites de velocidade fossem para cumprir sempre. Com grande poder vem grande responsabilidade Não deixa de ser tristemente irónico que uma das últimas coisas que a Patrizia partilhou no seu mural de Facebook tenha sido uma imagem que sintetiza brilhantemente tudo o que se pode dizer sobre este tema. Numa espécie de pirâmide, vemos os diversos utilizadores da estrada sequenciados de acordo com o seu grau de poder e respetivo grau de responsabilidade: um camião, uma carrinha, um carro, uma moto, uma bicicleta e, por fim, um peão. Não compreender ou contestar esta pirâmide de poder é ter as prioridades todas trocadas. A Patrizia morreu (lamento tanto, Patri, por ti, pelo teu filho/a e pela vida bonita que não terás) e sabemos como a sua trágica morte será usada como exemplo para espalhar a cultura do medo, ao invés da condenação da negligência grosseira de quem conduz um carro sem noção do que um carro faz aos utilizadores vulneráveis. Mas isto leva-me a uma outra imagem (em cima), uma fotografia que tirei há um par de semanas na Rua Morais Soares em Lisboa, e que é um exemplo positivo de construção de um futuro melhor. Vejo aquele pai regularmente aqui na vizinhança a ir buscar o filho à escola. Será absolutamente rotineiro e normal para esta criança, ao ponto de ir a ler. A sua segurança não depende do pai: depende de todos os outros utilizadores da estrada. Como diz aquela velha máxima, é preciso uma aldeia, não é? Se alguém consegue olhar para esta foto e achar que se trata de uma cena “irrelevante” ou “irresponsável”, lamento, mas algo está bastante podre aí dentro. Termino este texto com um apelo: a todas as pessoas que tenham essa possibilidade, desloquem-se no próximo sábado de manhã pelas 11 horas até à Avenida da Índia, onde irá decorrer uma vigília pelo fim dos atropelamentos na cidade. Haverá também vigílias pela mesma hora no Porto e em Leiria, e pelas 22 horas em Braga. Será uma homenagem à Patrizia, a todas as vítimas de atropelamento, e um clamor coletivo por mais segurança na cidade. Vão de bicicleta ou a pé. Sozinhos, em grupo, com crianças. Sem medos. Porque quantas mais pessoas de bicicleta ou a pé houver nas ruas de Lisboa, unidas por um mesmo fim, por uma mesma causa, por uma mesma forma alternativa e corajosa de estar na cidade, mais seguro será circular nela. É assim tão simples. #nãoéumciclistaéumapessoa Comments are closed.
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O Ciclista— Alexandre O'Neill
O homem que pedala, que ped'alma com o passado a tiracolo, ao ar vivaz abre as narinas: tem o porvir na pedaleira. Todos os textos e fotos:
© Laura Alves [excepto onde indicado] Imagem de capa: Collective Farm Worker on a Bicycle, Alexander Deineka, 1935 Histórico
Fevereiro 2022
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