Não consigo lembrar-me de uma única pessoa que não goste de bicicletas. Da bicicleta enquanto ideia. Conceito. Objecto estético. Beleza. Funcionalidade. Harmonia. A bicicleta enquanto sinónimo de liberdade, despreocupação, memórias de infância, carpe diem e essas coisas. Há comoção com a lembrança de um garoto numa bicicleta voadora, em contraste com uma lua gigante, a carregar o seu amigo ET num cesto da bicicleta. Há alegria instantânea e excitação pueril ao primeiro verso de I wanna ride my bicycle dos Queen. Há aquela padaria onde se gosta de ir porque tem uma bicicleta à porta, como uma promessa fabricada e pronta a usar de algo simples e genuíno, que nos recorda o álbum com as fotografias em tons sépia dos nossos pais ou avós. Há a publicidade — dos supermercados, dos bancos, das seguradoras, das marcas de automóveis, de tudo aquilo que pretende ser visto como uma marca sustentável, ecologicamente consciente ou simplesmente agradável à vista — que nos diz que a bicicleta é cool, é trendy, que a bicicleta pode ser adereço ou mesmo protagonista de campanhas com influenciadores que nos mostram como a vida é certamente bela e perfeita em cima de uma bicicleta. Há até uma euforia incontida na persona que assumimos quando no sofá vibramos com cada aceleração e cada subida esforçada do Tour de France. Pois é. Não consigo lembrar-me de uma única pessoa que não goste de bicicletas. E, contudo, o caso muda de figura quando falamos da pessoa que vai em cima da bicicleta. O objecto? Adoramo-lo quando está imóvel, inerte, em pano de fundo. Mas façamos um zoom out, vejamos para além do plano aproximado e coloquemos a bicicleta em acção. Demos-lhe contexto. Coloquemo-la num cenário: a estrada, as ruas de uma cidade, o trânsito. Acrescentemos-lhe um elemento humano, que encontra na máquina outrora inerte um seu prolongamento. Movem-se juntos, como um só. A narrativa sofre um volte-face. E eis que a nossa heroína, a boa da fita, passa de repente a vilã quando se acrescenta um elemento humano, um ânimo, se quisermos. Uma bicicleta que se torna activa e presente através do elemento humano que a conduz torna-se de repente um incómodo, um invasor do território, uma ameaça ao statu quo. Exagero? Talvez não. Na semana passada, precisamente no mesmo dia, calhou dar de caras com dois textos distintos, que são dois exemplos acabados disto mesmo. Ambos os textos foram partilhados pelos seus autores num grupo do Facebook — A bicicleta como meio de transporte — e, olhando através das camadas de ironia, percebemos que existe algo de muito errado em ambos os relatos, e que se resume a isto: exercício de poder. O primeiro é um relato de Paulo Mourão, um professor de Educação Física da zona de Torres Novas: «Só estorvas!!» A Ponte da Chamusca sobre o rio Tejo é negativamente conhecida pela sua inadequação ao trânsito automóvel moderno, sendo por isso fonte da contestação da população local que reclama frequentemente pela melhoria da situação. Amplamente utilizada por ausência de alternativas, caracteriza-se pela impossibilidade de nos seus 800 metros de extensão se cruzarem dois pesados "mais larguinhos". Quando tal acontece provoca engarrafamentos "de horas" até ser desbloqueada a situação. Ontem circulava nesta ponte de bicicleta quando, na parte final da travessia da mesma, senti atrás de mim um veículo pesado com a clara (e quanto mim correta) opção de não me ultrapassar. Embora a ultrapassagem fosse possível, o pesado não iria respeitar os 1,50 metros, pelo que mentalmente agradeci a atenção e aumentei a velocidade bem acima dos 30 km/h para terminar a travessia o mais rápido possível. Eis que quando menos de 20 segundos após a situação, ao terminar o tabuleiro da ponte sou brindado com um automobilista que aguardava na fila atrás do pesado em 1.º lugar da mesma (que por veículo idêntico em sentido contrário não poderia atravessar) com a frase "Só estorvas". O segundo texto foi escrito pela autora da página Prova de Vida e a acção decorre em Lisboa: Vinha a descer a rua Guerra Junqueiro, em Lisboa, de bicicleta quando vejo um carro atravessado, a tentar estacionar. Parei, claro, a uma distância de segurança. Atrás de mim, outro carro buzinava, insistentemente. Olhei e percebi que a condutora buzinava para mim. Não fosse ela não conseguir ver o carro no meio da estrada, apontei para a frente, mas claro que a mulher estava a ver o carro, que não a deixaria avançar mesmo que eu me eclipsasse. Comecei a ouvir gritar, a janela do lado do pendura (onde se sentava um adolescente, que assim adquiriu um belo exemplo de como ser uma besta automobilizada) abriu-se e a mulher gritou “as bicicletas é daquele lado”, apontando para a ciclovia que há no passeio, que serve apenas para o sentido ascendente. Calmamente, disse-lhe que estava enganada, que aquele lado servia para as bicicletas subirem e que aqui, na estrada, era por onde deviam descer, como facilmente se via olhando para a sinalização vertical e pintada no chão. Claro que a senhora continuou a praguejar. O carro da frente lá estacionou e eu avancei, com o carro de trás quase colado a mim. Oh, como são difíceis as relações humanas! E, oh — vá-se ler manuais de psicologia para entender porquê —, como são complexas as relações humanas entre pessoas que conduzem um automóvel e aqueloutras que seguem à sua frente em cima de uma bicicleta. Uns dirão que é inveja (da liberdade das duas rodas). Outros dirão que é insegurança (quando não se compreende o outro, o ataque é uma defesa). Outros ainda falarão na fúria ao volante (a road rage, aquele fenómeno que transforma uma pessoa bestial numa besta quando se põe atrás de um volante). Eu acho que são todas elas, por vezes uma de cada vez, por vezes todas ao mesmo tempo. Não vejo outra explicação para, do nada, alguém abrir a janela do carro e, sem que tenha havido qualquer interação prévia entre as pessoas, berrar a outrem «Só estorvas!», pelo simples facto de essa pessoa ir numa bicicleta. Está para além da minha compreensão do que é ser uma pessoa decente, apta a viver em sociedade. Os dois textos que reproduzi acima relatam experiências diferentes, em locais diferentes, com duas pessoas diferentes. E, contudo, ambos convergem numa mesma expressão: a bicicleta como "a origem de todos os males". E nisto tenho um flashback e recordo-me de todas as vezes em que, indo eu a pedalar sem qualquer intenção de incomodar quem quer que fosse durante o meu percurso (procurando apenas ter a condução defensiva costumeira), fui alvo da pressa, das buzinadelas, das palavras iradas, dos insultos e, em alguns casos, das manobras perigosas de automobilistas — simplesmente porque eu estava na sua frente. E porque a minha simples presença numa bicicleta os incomodou, melindrou, irritou, enfureceu, ao ponto de não se conseguirem conter e verbalizarem ou agirem, como se costuma dizer, “cegos pelo calor do momento”. Até parece uma coisa romântica. Automobilista atropela ciclista cego pelo calor do momento. Só que não. Há pessoas que morrem assim. Morrem mesmo. Sem que nada tenham feito. Como se não fosse seu o direito de estar ali. Road rage e lutas territoriais A condução agressiva e a fúria ao volante são conceitos que estão mais do que estudados e comprovados — e mesmo que não estivessem, basta andarmos um dia de carro num grande centro urbano para ver ao vivo aquilo de que estamos a falar. A expressão road rage, literalmente, "raiva na estrada", surgiu nos Estados Unidos na década de 1990. Em “Aggressive Driving: Three Studies” uma publicação da AAA Foundation for Traffic Safety que reúne três estudos sobre condução agressiva, road rage e comportamento agressivo por parte dos condutores, encontramos uma definição: «No seu sentido mais amplo, pode referir-se a qualquer demonstração de comportamento agressivo por parte de um condutor. No entanto, o termo é frequentemente usado para se referir aos actos mais extremos de agressão, como violência física, que ocorrem como resultado direto de um conflito entre condutores. A resposta a uma situação stressante pode muitas vezes ser raiva. Quando somos confrontados com uma situação frustrante, muitas vezes recorremos à agressão. Muitas vezes não vai além da violência verbal. Geralmente não passa de abuso verbal. No entanto, existem circunstâncias em que se recorre à violência física.» Isto traduz-se, na prática, numa escala de raiva que inclui comportamentos agressivos ao volante como fazer sinais de luzes de forma insistente, perseguir o alvo da fúria, gestos obscenos, manobras arriscadas, obstrução deliberada de outros veículos, uso de linguagem violenta e, em casos extremos, agressão física. Matthew Joint, especialista em psicologia comportamental e autor do estudo específico sobre road rage, identifica as causas deste fenómeno como sendo geralmente circunstanciais — ou seja, um conflito momentâneo entre condutores, um mal-entendido ou uma manobra arriscada que é percepcionada pelos outros como sendo condução agressiva. Não é provável que a causa desta fúria vá para além daquele momento, podendo estar relacionada com algo que correu mal no emprego ou algum stress doméstico. Outras vezes, pode haver a sensação de uma frustração não identificada, que abre a porta à fúria quando surge um qualquer obstáculo ou um imprevisto. «No entanto, a falta de sinalização ou uma manobra mal feita por outro condutor pode ser o suficiente para desencadear a libertação da frustração reprimida, que é direcionada ao outro condutor. Além disso, há uma série de factores que explicam porque é que conduzir, em particular, faz com que essa frustração se manifeste. Estudos de comportamento animal demonstraram que ratos e vários primatas podem reagir agressivamente em resposta à sobrelotação. É razoável sugerir que os humanos reagem de maneira similar.» Ou seja, pegando nesta última evidência, a sobrelotação, parece claro que o próprio excesso de trânsito funciona com um gatilho, que transforma uma ligeira frustração num “não me apareçam à frente que eu passo-vos por cima!”. Por outro lado, aponta o autor, os humanos são territoriais. Enquanto indivíduos, somos ciosos do nosso espaço pessoal, o que pode ser considerado um mecanismo de defesa. E, assim, quem invade “o nosso território” é visto como uma ameaça — se levarmos o instinto da savana para a “selva urbana”, facilmente vemos como no caso do automóvel isto é levado ao extremo, com o condutor fechado no seu espaço territorial com ar condicionado e bluetooth, encarando como ameaças ao seu território aquilo que é diferente dele. E nestes casos, um automobilista à defesa pode querer fazer valer a sua dominância. Quando é que isto pode correr mal — ou muito mal? Quando a outra parte, a “ameaça”, é de muito menor dimensão, é mais frágil ou está muito menos protegida. Como quando uma parte é um condutor de um automóvel toldado pela road rage e a outra é uma pessoa numa bicicleta. Não nos esqueçamos de que quem está na outra ponta da road rage também é cioso do seu território. Uma pessoa que circula de bicicleta, completamente comprometida em observar as regras da estrada e cujo único “pecado” é não ser igual a automóvel em volume, peso e velocidade, não pode senão achar completamente despropositado e insultuoso que invadam o seu espaço pessoal para lhe gritar «Só estorvas!» ou fazer considerações acerca do tamanho do rabo. Se além das palavras rudes, houver lugar a manobras agressivas com o único propósito de intimidar, é um jogo desigual. E potencialmente mortal. Numa medição de forças entre um carro e uma bicicleta, não há volta a dar: é o carro quem causa maior dano. É física pura e simples.
Morte aos ciquelistas Há uma canção infame de uma banda punk portuguesa, chamada Comme Restus, que reza assim: Aí veiem eles a pedalar a trinta á hora onde irão parar Á um ou outro que felismente caiu e os outros vão pá puta cos pariu Morte aos ciquelistas Morte aos omensinhos que andam de biciqueleta Passando ao lado dos erros gramaticais, que não sei se é atitude punk, ou simplesmente uma má transcrição para a Internet, esta letra traduz na perfeição o estado de espírito das pessoas que sofrem de fúria ao volante e que perante duas opções — libertar a fúria contra outrem ou reconhecê-la e seguir em frente —, escolhem, conscientemente, endereçar essa fúria à pessoa em cima da bicicleta. Na minha mente, há um sítio onde os automobilistas enraivecidos vão todos em hora de ponta e, presos num enorme engarrafamento, fazem mosh, saltam para cima dos capôs dos seus carros rasgando as vestes numa orgia de buzinadelas e cheiro a tubo de escape e berrando «MORTE AOS CIQUELISTAS!!» até caíram no chão com uma overdose de CO2. Tal como a música, a fúria ao volante é uma linguagem universal — nesse campo, não estamos “orgulhosamente sós” enquanto país. E se há coisa que consegue unir as pessoas, além do amor (felizmente), é o seu extremo: o ódio. Ou, aligeirando a linguagem, o desprezo pelos direitos de outros. A atitude dos automobilistas perante os utilizadores de bicicleta, e de que forma essa atitude influencia o modo como os tratam quando partilham a estrada, tem sido objecto de vários estudos no âmbito da condução agressiva. Para já, destaco um estudo australiano de 2018, “The factors shaping car drivers’ attitudes towards cyclist and their impact on behaviour”, publicado no jornal Accident Analysis & Prevention, e que visou precisamente abordar a origem da agressividade dos automobilistas para com os utilizadores de bicicletas — ou esse grande colectivo sem rosto designado por “os ciclistas”. Os investigadores fizeram um inquérito a 308 automobilistas acerca da sua percepção e atitude relativamente aos ciclistas, bem como o nível da sua agressividade relativamente ao modo como os ciclistas estavam vestidos, se com roupas casuais ou desportivas. O estudo conclui que uma grande parte dos condutores de automóveis é duplamente autocentrada (centrados em si mesmos e centrados no seu automóvel), sendo adversos à partilha da estrada com outros, nomeadamente, aqueles que não encaram como sendo iguais. A atitude negativa e agressiva demonstrada para com ciclistas na estrada não tem tanto a ver com a forma como estes se vestem ou se comportam, mas antes com o simples facto de estarem lá. Isto leva-me a um outro estudo, também vindo da Austrália, cuja principal conclusão indica que mais de metade dos automobilistas não vê os ciclistas como sendo inteiramente humanos. Para este estudo — “Dehumanization of cyclists predicts self-reported aggressive behaviour toward them: A pilot study”, publicado no Transportation Research Part F: Traffic Psychology and Behaviour — foi pedido aos participantes que indicassem, numa imagem com uma escala de evolução que iniciava numa barata e terminava num ser humano, como percepcionavam um ciclista. A imagem em questão foi usada, segundo uma das autoras, porque alguns dos insultos que geralmente são dirigidos aos ciclistas comparam-nos a “baratas”, “mosquitos” (ou, como acontece por cá, “a parasitas”). Os resultados vieram realçar que os ciclistas são vistos como um grupo minoritário e um alvo de atitudes e comportamentos negativos, com 55 por cento dos participantes que nunca usavam a bicicleta a classificar os ciclistas como menos do que humanos. E se um grande número de condutores de automóveis não perceciona os ciclistas na estrada como seres humanos de direito, facilmente se encontra uma relação entre esta desumanização e a linguagem e condução agressiva deliberada dirigida a quem se desloca em bicicleta. Entre as pessoas com atitudes desumanizantes visadas neste estudo, 20 por cento admitiu usar o carro para deliberadamente bloquear um ciclista, 14 por cento passou deliberadamente demasiado perto a fazer uma ultrapassagem, e 13 por cento usou o carro para impedir a passagem de uma bicicleta. A desumanização dos indivíduos é algo acerca do qual já estamos ao corrente, noutras situações que envolvem discriminação étnica e racial, por exemplo. E podemos até questionar se um problema tão grave — a coisificação do ser humano, o vê-lo como um objecto desprovido de direitos e “alma” — deve ser aplicado neste contexto. Vejamos, por isso, o que diz Alexa Delbosc, uma das investigadoras envolvidas neste estudo: «Quando não consideramos que alguém é inteiramente humano, é mais fácil justificar ódio ou agressão contra essa pessoa. Isto pode levar a um ciclo crescente de ressentimento. Se os ciclistas se sentem desumanizados pelos outros utilizadores da estrada, é mais provável que se insurjam contra os automobilistas, alimentando uma profecia autorrealizável que perpetua ainda mais a desumanização de que são alvo.» Dar um rosto à pessoa que vai numa bicicleta, ou melhor, percepcioná-la como uma pessoa — que até pode ser alguém que conhecemos, um familiar, uma colega de trabalho — ajudará certamente a reduzir a atitude negativa relativamente àquele “obstáculo”, que é na realidade “uma pessoa igual a mim”. E evitar à partida muitos conflitos no trânsito. Para contrariar a tendência para a desumanização, diz Alexa Delbosc, a linguagem é uma ferramenta poderosa: «Falemos de pessoas que usam a bicicleta em vez de ciclistas, porque esse é o primeiro passo no sentido de acabar com a desumanização.» E desta forma, lembrando a máxima «não é um ciclista, é uma pessoa» (de que já falei há um meses num texto publicado no Lisboa para Pessoas), se alguém a hiperventilar bater com a porta do carro, saltar para cima do capô e começar a berrar uma versão mais humanizada da música dos Comme Restus — «MORTE ÀS PEÇOAS QUE ANDAM DE BICIQUELETA!!» — isso já parece uma coisa assim um bocadinho a roçar o sociopata, não? A pirâmide de poder Chego, então, à imagem com que desejo terminar esta reflexão: mais poder na estrada deve implicar maior responsabilidade na estrada. Nesta espécie de pirâmide, vemos que na base está um veículo pesado, com diversos outros veículos e utilizadores da estrada sequenciados, até chegarmos ao utilizador da bicicleta e ao peão, no topo. E a dimensão de cada um dita o quão responsável é pelo bem estar-estar e pela segurança dos outros. A fúria na estrada, a road rage, o berrar a alguém «Só estorvas!» não pode, não deve entrar nesta equação. A estrada não deve ser um campo de medição de forças, porque nessa batalha inglória, é sempre o ser humano, e não a máquina, quem perde. Novamente: não consigo lembrar-me de uma única pessoa que não goste de bicicletas. Não queiram ser a pessoa que não gosta do humano que vai em cima da bicicleta. Referências:
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O Ciclista— Alexandre O'Neill
O homem que pedala, que ped'alma com o passado a tiracolo, ao ar vivaz abre as narinas: tem o porvir na pedaleira. Todos os textos e fotos:
© Laura Alves [excepto onde indicado] Imagem de capa: Collective Farm Worker on a Bicycle, Alexander Deineka, 1935 Histórico
Fevereiro 2022
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