Enquanto ciclista e mulher, quero o direito à liberdade de me mover na cidade com o meio de transporte que quiser, e não ser penalizada em termos de segurança porque o meio escolhido é a bicicleta. Sempre que ouço alguém a falar de “ciclovazias” – um “trocadilho esperto” que, na realidade, revela mais do preconceito, da falta de ideias e do desprezo pelas formas de mobilidade suave de quem o atira para a conversa do que verdadeiro sentido de humor – lembro-me sempre de um episódio que se passou comigo há uns quatro ou cinco anos em Lisboa. Na altura, já a ciclovia da Avenida Duque d’Ávila funcionava em pleno, a zona do Saldanha já havia sido intervencionada, pelo que toda aquela zona — ainda para mais sendo praticamente plana – atraía cada vez mais pessoas a usar a bicicleta. Estamos a falar de uma altura em que o sistema de bicicletas partilhadas, a GIRA, ainda não estava instalado naquela zona da cidade, mas em que, por existir uma ciclovia a atravessar um eixo central da cidade (interligando-se depois com as ciclovias da Avenida Fontes Pereira de Melo e Avenida da República), as bicicletas surgiram naturalmente. Num dado dia de manhã, encontrei-me com um colega de trabalho na Duque d’Ávila, antes de nos encaminharmos para uma reunião com um cliente num edifício ali perto. Enquanto fazíamos tempo e bebíamos o nosso café antes da reunião, não sei como nem porquê, o assunto virou para a mobilidade e para a falta de transportes públicos em algumas zonas de Lisboa — o meu colega morava e mora precisamente numa zona mal servida de transportes públicos, a Ajuda, e sendo fotógrafo precisa com frequência de transportar material de trabalho pesado, logo, o carro é-lhe uma ferramenta essencial. E anuí; sou solidária com os argumentos quando estes são válidos e com os desafios com que os outros se deparam. Mas foi então que o meu colega lançou a bomba: «É que depois fazem estas ciclovias que ninguém usa!». Ora, eu que, naqueles minutos em que estávamos ali à conversa à beira da ciclovia, já tinha visto pelo canto do olho passar uns dez ou doze ciclistas das mais diversas espécies, não me contive. Como é que ele não tinha visto nenhuma bicicleta a usar a ciclovia, se eu, que estava ali mesmo junto a ele, tinha visto uma mão-cheia? E foi aí que percebi. Só vemos aquilo a que damos importância. Desde há muitos anos que a bicicleta enquanto meio de transporte me é um tema caro e, como tal, onde quer que eu vá, onde quer que eu esteja, qualquer bicicleta que passe por mim na rua não é ruído de fundo – a minha atenção é captada por ela, por um segundo que seja, o suficiente para ver se aquela pessoa é homem, se é mulher, se vai a praticar desporto, se vai a passear, se vai em modo casa-trabalho, se vai com crianças, se a bicicleta é nova, se é velha, enfim, uma panóplia de coisas fugazes, umas vezes contando histórias, outras não, mas que pessoalmente me alegram. E depois há quem não veja nenhuma bicicleta. Mesmo quando elas estão lá, quando passam ao lado na estrada, quando vão pela ciclovia, quando estão parqueadas na rua, quando fazem parte da vida em sociedade. São completamente invisíveis, como se não existissem. Para certas pessoas, muitas delas com efetiva responsabilidade naquilo em que as cidades se tornam, as bicicletas apenas existem pela negativa: ou seja, apenas se tornam visíveis quando lhes causam incómodo. Um incómodo chamado Almirante Reis E foi essa a metamorfose da bicicleta naquela grande avenida que atravessa Lisboa desde o Martim Moniz até ao Areeiro – passou de invisível a incómoda praticamente sem meio termo. Tendo esta ciclovia sido usada politicamente como arma de arremesso desde que foi criada, pelo meio da clivagem e de alguma falta de noção quanto ao real “elefante” na sala, no meio do debate esqueceu-se muitas vezes de que estamos a falar de pessoas. E da segurança dessas pessoas. A verdade é que desde há bastante anos que a Rua da Palma e a Avenida Almirante Reis são um eixo fundamental para quem se move de bicicleta em Lisboa. É a rua com melhor piso, com menos declive e o caminho mais direto para uma série de bairros. E desde há bastantes anos que ciclistas subiam e desciam a avenida, fazendo ziguezagues por entre os carros – os em andamento e os parados em segunda e em terceira fila –, desviando-se de carris de elétrico e olhando por cima do ombro para perceber se o carro atrás passaria demasiado perto ao fazer uma ultrapassagem. Desde há bastantes anos que bicicletas e carros coexistiam nesta avenida e, contudo, parecia que ninguém dava pela existência das bicicletas. Eram invisíveis. Sonhavam com o dia em que os planos de uma ciclovia saíssem do papel. E um dia saíram. De forma repentina, como um penso rápido arrancado a sangue-frio, as bicicletas retiraram espaço aos carros. E toda a gente ficou muito espantada: de onde é que saíram estas bicicletas se ainda ontem não havia nenhuma? E, de olhos arregalados, incrédulos, continuam a não perceber que elas já ali estavam: eles é que não as queriam ver. Crias as condições, e eles surgem Quando comecei a usar a bicicleta como meio de transporte em Lisboa, a cidade não tinha qualquer ciclovia. Algum tempo depois, foi criada a ciclovia junto ao rio, que eu usava geralmente em lazer, pois aquela apresentava alguns obstáculos de acessibilidade que, no meu caso, eram desmotivadores para um percurso quotidiano casa-trabalho. Desde a descontinuidade do percurso à dificuldade de transpor a linha do comboio com a bicicleta para chegar a rio, usar aquela ciclovia para chegar ao trabalho, ainda que um percurso bonito, não era simples nem prático nem rápido. Isto para dizer que quando se usa a bicicleta como meio de transporte, por vezes privilegia-se o percurso mais direto e com menos obstáculos — o que leva a que tanta vezes não se opte por usar uma dada ciclovia, uma situação que causa tremenda confusão a muitos daqueles que não têm por hábito usar a bicicleta. Por essa razão, morando à época em Alcântara, sempre preferi pedalar pela Avenida 24 de Julho para fazer o percurso até à Baixa, lidando com o trânsito com a tranquilidade possível, técnicas de condução defensiva e reflexos apurados. Sempre correu bem, tirando uma ou outra interação desnecessária e não solicitada com automobilistas ciosos da sua primazia. Mas essa é a minha experiência – eu, que não sou absolutamente nada atlética, mas que sou destemida o quanto baste. Hoje existe já, felizmente, uma ciclovia na Avenida 24 de Julho, do lado de cá da linha de comboio, que não exige que quem queira usar a bicicleta como meio de transporte nesse trajeto tenha de ser destemido. Falo desta minha experiência passada porque, volvidos alguns anos, eis que resido noutra parte da cidade. Uma zona servida, precisamente, pela ciclovia da Avenida Almirante Reis. Uma ciclovia que, sim, é absolutamente útil – porque está acessível facilmente a partir de muitos sítios, porque é um percurso linear, porque atravessa um eixo nevrálgico da cidade. E se antes apenas os destemidos se atreviam a subir ou a descer esta avenida de bicicleta (e já havia muitos), é absolutamente um prazer ver agora pessoas de todas as idades, de todos os géneros, com todos os tipos de bicicletas, a usufruir de todas as vantagens de segurança que esta ciclovia lhes dá. Um corredor ciclável, tornando o meio menos hostil, e que permite que pais levem crianças em cadeirinhas ou mesmo a pedalar ao seu lado em segurança. Uma via reservada que permite que idosos ou pessoas menos experientes a pedalar possam ganhar confiança e perceber que sim, é possível uma forma diferente de mobilidade ao seu próprio ritmo. Àqueles que, neste ponto, balbuciam novamente a palavra “ciclovazia”, a ver se o discurso pega: é com o maior orgulho que vos digo que estão enganados, e tenho muitas e bonitas fotografias que o provam. Aliás, basta andar um pouco a pé pela zona e ver para além da bolha. Ah, e claro, existem estudos e contagens que provam que este é o caminho rumo a uma cidade mais inclusiva, mas deixo a estatística para outra altura, que eu aqui venho é falar de emoções e de uma cidade mais humana. Não há (uma boa) alternativa à ciclovia da Almirante Reis Podemos não concordar com todas as opções tomadas no campo da mobilidade em Lisboa nos últimos anos, podemos concordar com umas coisas e discordar de outras. A vida raramente é a preto-e-branco. Nos últimos meses, porém, promessas políticas foram feitas no sentido de reverter a ciclovia da Avenida Almirante Reis — “acabar” foi a palavra usada, sendo que tenho esperança de que o novo executivo municipal desenvolva antes esforços para a melhorar, em vez de ceder a impulsos populistas. Porque, se for esse o caso, não só o erro em termos de segurança e de qualidade de vida na cidade será colossal – com o trânsito automóvel a aumentar cada vez mais, em vez de diminuir como seria tendencialmente – como será dado um péssimo sinal às pessoas que usam a bicicleta como meio de transporte: o sinal de que elas não são relevantes, que as suas vidas não são importantes. E isso é bastante grave. Tem-se também falado muito de encontrar alternativas à ciclovia da Avenida Almirante Reis, criando um percurso ciclável nas ruas circundantes, de forma a permitir que a avenida seja reservada apenas ao trânsito automóvel. Ora, como já referi mais atrás, não é por não existir uma ciclovia na Almirante Reis que os ciclistas irão deixar de a usar. Voltar-se-ia, simplesmente aos tempos da invisibilidade. Eles continuam lá, mas opta-se por não se reconhecer a sua existência. E porque é que tantos utilizadores da bicicleta se agarram firmemente à ciclovia da Almirante Reis? Quando eu uso a bicicleta como meio de transporte na cidade, de forma geral comporto-me como um carro. Claro, posso fazer desvios e escolher um caminho mais agradável, mas quando o meu objetivo é ir do ponto A ao ponto B todos os dias, escolho um percurso “sem espinhas”. É esse percurso “sem espinhas” que a ciclovia da Almirante Reis proporciona a tantas pessoas que usam a bicicleta e que vivem num dos muitos bairros que ladeiam a avenida desde o Martim Moniz ao Areeiro. É uma via linear, sem obstáculos, que permite que quem mora nos Anjos, em Arroios, na Graça, na Penha de França, no Areeiro e em Alvalade se desloque entre casa o trabalho, ou seja qual for o seu destino, de forma segura numa grande parte do seu percurso. Fingir que a ideia de criar uma ciclovia alternativa, serpenteante, pelas ruas laterais cumpriria a mesma função, é típico de quem não usa a bicicleta de uma forma realista no dia a dia. Primeiro, porque, na prática, quem usa a bicicleta como meio de transporte não deseja andar às voltinhas numa ciclovia, mas sim ter um caminho linear e descomplicado. Lembro-me sempre dos parques verdes onde o projetista desenhou belíssimos caminhos sinuosos, mas onde as pessoas que atravessam o parque diariamente foram elas próprias calcando um trilho a direito no meio do terreno. Segundo, porque a ciclovia da Almirante Reis é, efetivamente, o percurso com o declive menos acentuado e que obriga a menos esforço por parte de qualquer ciclista, seja mais ou menos experiente. (Tenho visto com frequência crianças a subir e a descer a ciclovia da Almirante Reis com os pais, não me venham dizer que isso não é uma beleza…) E terceiro, não nos esqueçamos de outra perceção de segurança não menos importante. Enquanto mulher, eu quero poder pedalar, a qualquer hora, de dia ou de noite, numa ciclovia ampla, com boa visibilidade, que atravesse zonas iluminadas e com movimento. Não quero ser obrigada a usar ciclovias em ruas pouco movimentadas, onde durante a noite não exista vivalma, apenas porque aí nessas ruas refundidas não se incomoda os automóveis. Enquanto ciclista e mulher, quero o direito à liberdade de me mover na cidade com o meio de transporte que quiser, e não ser penalizada em termos de segurança porque o meio escolhido é a bicicleta. Lembremo-nos sempre daquela importante ideia de urbanismo que diz que a qualidade de vida de uma cidade se observa pela quantidade de mulheres que nela pedalam. Enquanto não estamos a olhar, a realidade acontece Gostaria de terminar trazendo à baila um episódio que envolve Einstein, e que vem muito a propósito, em que o génio da física diz acreditar que a matéria tem uma realidade independentemente das medições que são feitas. Einstein está, neste caso, a falar de partículas e de assuntos quânticos que não cabem neste texto, mas a sua conclusão, em jeito de metáfora, encaixa aqui perfeitamente para ilustrar a forma como olho para a existência de cada vez mais ciclistas nas ruas e nas ciclovias de Lisboa. Disse ele: «A Lua não deixa de existir só porque não estamos a olhar para ela.» Tal como o vejo, as pessoas que usam a bicicleta diariamente na ciclovia da Avenida Almirante Reis não deixam de existir só porque, num dado momento não estamos a olhar para elas. Ou a olhar por elas. [Texto originalmente publicado em Lisboa Para Pessoas a 11 Outubro 2021] Comments are closed.
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O Ciclista— Alexandre O'Neill
O homem que pedala, que ped'alma com o passado a tiracolo, ao ar vivaz abre as narinas: tem o porvir na pedaleira. Todos os textos e fotos:
© Laura Alves [excepto onde indicado] Imagem de capa: Collective Farm Worker on a Bicycle, Alexander Deineka, 1935 Histórico
Fevereiro 2022
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